De Londres para Iguatu, no sertão do Ceará
Era 1981, eu cobria a indústria automobilística em O Globo (Sucursal de São Paulo). Chegara de uma viagem à Londres e veio a “bomba”: a Mercedes Benz do Brasil (MBB) demitira 5.200 trabalhadores em um único dia, em 7 de agosto. Ao chegarem na “chapeira” que abrigava os cartões de ponto (quem lembra deste tempo?) liam a informação: compareça ao DP (Departamento Pessoal) hoje renomeado como RH (Recursos Humanos).
E lá ia o ex-funcionário receber a carta comunicando sua demissão. Foi algo que mexeu com o setor, com outras fábricas demitindo. Como a Ford, que dispensou 700 pessoas.
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O que vai acontecer com estas 5.200 pessoas que foram demitidas? Era um pensamento geral na Redação. Pensamos que seria bom descobrir isso. Fui ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e, conversando com o pessoal, apurei que muitos estavam voltando “pra casa”, porque não havia perspectiva de empregos na região, ainda mais no setor, que enfrentava uma enorme crise.
Peguei o nome de três dos demitidos, para ver qual seria o melhor para fazermos a viagem de volta com ele, para sua terra natal. Um voltaria para Minas, outro para Mato Grosso. O terceiro, escolhido em comum acordo com o Marco Antônio Antunes Pereira, querido amigo e então coordenador de Economia na Sucursal, foi aquele que voltaria para Iguatu, no sertão do Ceará, ao lado de Orós, na época o maior açude do País, com 600 m de comprimento e 54 de profundidade, com a capacidade de 2 milhões de m³ de água. Hoje o maior é o Castelão, também no Ceará, com 770 m de comprimento.
Confesso não lembrar o nome do operário que planejava voltar “pra casa”. Mas fui procurá-lo em sua casa, bem pertinho da MBB. Sua história era um verdadeiro romance. Ele saíra de Iguatu trazendo três dos cinco filhos, porque dois resolveram ficar por lá mesmo. E depois, na volta, um dos filhos resolveu ficar em São Paulo porque não via futuro no Sertão do Ceará.
Com a família desmembrada, embarcou no dia 7 de setembro, numa viagem que, na época foi feita em mais de 60 horas (hoje ela é feita em 52 horas), num ônibus modelo Mercedes-Benz que, com certeza, ele ajudara a produzir.
E aí começa minha história nessa viagem. O calor reinava dentro do Mercedes sem ar condicionado. O pneu furou e foram necessárias pelos menos 2 horas para sua troca. Um banho apenas neste período, pois em um único lugar encontrei um chuveiro/balde. Sem sabonete ou toalha. Natural total.
A chegada a Iguatu foi perto do meio-dia. Fui para um hotel indicado pelo taxista, pois não havia conseguido fazer reserva. Consegui um quarto com banho. A água era quente porque a caixa d´água ficava exposta ao sol do sertão.
Ao sair, para ir almoçar, e descansar em seguida, para depois fazer uma entrevista com o Bispo da cidade, que na época tinha por volta de 82 mil habitantes (no Censo de 2002, já eram 103.300). Quando deixei a chave do quarto sobre o balcão, o atendente disse: pode deixar na porta mesmo. Expliquei que tinha uma máquina de escrever e uma de fotografia.
– Moço – respondeu ofendido – o único freguês desconhecido aqui é o senhor. O resto, conhecemos todos e ninguém rouba nada aqui.
Dei uma carteirada, mostrando minha credencial de O Globo, para limpar minha barra e, constrangido, voltei até o quarto e deixei a chave na porta.
O vento que vem da África
À noite, fui entrevistar o bispo. Nada relevante, mas, na ida, vi que todos os moradores estavam sentados, na calçada, em cadeiras de balanço, assistindo TV, que ficava sobre a janela da sala, virada para a sua.
Na volta, resolvi parar para saber porque aquilo acontecia. Quando parei, abordando um dos moradores e me identificando, ele gritou: “muié, trais uma cadeira pro moço jornalista”. E lá veio uma cadeira de balanço.
Quando perguntei por quê da cadeira de balanço, ele disse que assim não precisava de abanador ou leque. Perguntado sobre até quando ficavam ali, a resposta foi que iriam para dentro, assim que passasse “o vento que vem lá da África”, depois da novela das 8 (lembra desse tempo?).
Dito e feito, quando a novela das 8 acabou, ele disse que eu olhasse para o fim da rua. E vi as pessoas recolhendo a TV, as cadeiras e entrando em casa. Aprendida a lição do vento, ao vivo, despedi-me do gentil anfitrião e segui em direção ao hotel, já com uma temperatura muito mais agradável do que aquela sentida antes da novela das 8.
No dia seguinte, fui encontrar com a família do ex-funcionário da Mercedes-Benz, às margens de Orós, onde não havia energia elétrica. Seus pais, irmãos, todos os filhos, menos a que ficou em São Paulo. Era noite, depois de um jantar, à luz de lampião, sob um céu lindo e estrelado.
Terminado o jantar (o prato foi buchada, que até hoje não sei se gostei ou não), veio o anuncio: vamos assistir a novela das 8. Mas como? Pensei, se não tem luz. Mas tinha uma TV e uma VW Brasília. Ligado o motor, conectada a tv na bateria e lá fomos assistir à novela das 8, com muito chuvisco na tela. Mas era o que tínhamos para o momento.
O ex da MBB, voltou para sua terra, fazer o que lá fazia quando a deixou, trabalhar na terra que tinha com a família. E torcer para que a filha, em São Paulo, ficasse bem.
Foi uma delícia de viagem, com a emocionante a volta do trabalhador da MBB, sentido com ele a dor da frustração e, ao mesmo tempo, uma alegria incontida de voltar para sua cidade, sua gente, recomeçando sua vida na terra.
No quesito lazer da viagem, um passeio com um jegue que, na época dominava o cenário na área de pequeno transporte no Sertão. Hoje eles estão abandonados por todo os Nordeste, ou virando alimento. Foram substituídos pela moto.
Na volta, enfrentei 360 km, de ônibus, chegando em Fortaleza, 6 horas depois. Da capital Cearense, voei para São Paulo, voltando à minha terra, Santos.
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